Fabiana Moraes

'Acabou, garota. Quer dizer, vovó': velhofobia quer expulsar as mulheres do espaço público e do debate social

Caso das universitárias em Bauru e insultos contra Madonna desvelam máquina de moer mulheres: que saiam de cena ao envelhecerem ou vivam com os ataques.

'Acabou, garota. Quer dizer, vovó': velhofobia quer expulsar as mulheres do espaço público e do debate social

Entro no banheiro de uma universidade. Três mulheres jovens conversavam lá dentro. Eu, que adoro escutar a conversa dos outros (não escolhi jornalismo somente para sofrer, né colega?), me tornei inadvertidamente parte do grupo. “Aí, quando eu ia entrar na sala do pilates, vi três velhos lá. Desisti”, dizia uma delas, justificando o fato de não ter participado da atividade. As colegas assentiram. Lavo as mãos e,  assombrada há tempos com a velhofobia socialmente instalada entre nós, não me aguento: “Olha esse preconceito com a velhice, gente…”. Elas riram, cordiais, mas falaram que não era preconceito, só um comentário e tal. Eu também ri, mas repeti a frase. Saímos quase ao mesmo tempo e rumamos para lugares diferentes.

Fazia exatamente uma semana que o agora famoso vídeo com outras três jovens universitárias circulava nas redes: nele, as mulheres ridicularizavam uma colega de sala com mais de 40 anos. Ela deveria, segundo as estudantes, estar aposentada e fora da universidade. 

Achei uma coincidência interessante: dois ambientes universitários, três jovens mulheres em cada. O primeiro, em que eu estava, é do ensino público federal e localizado no Recife, capital de Pernambuco, cuja votação em Lula foi de 56,32% no segundo turno, enquanto Bolsonaro levou 43,68% dos votos. A segunda universidade é privada e localizada em Bauru, no interior paulista, uma cidade que deu 61,04% dos votos a Bolsonaro e 38,96% a Lula. Ressalto as diferenças porque elas eventualmente poderiam mostrar também distinções entre os dois grupos – mas, no fim, ambos se equalizaram. 

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O que isso diz sobre nós, que vivemos um momento no qual a expectativa de vida no Brasil aumentou (é de 73,6 anos para os homens e 80,5 anos para as mulheres)? No qual pedimos por necessárias melhorias na saúde pública e na garantia da longevidade dos mais pobres? No qual a palavra “ancestralidade” ganhou um enorme protagonismo, principalmente nas alas mais jovens e progressistas?

Meu alerta vermelho sobre o mar de velhofobia em que nos encontramos acendeu quando um verdadeiro debate global sobre a aparência da cantora Madonna dominou as redes sociais: a cantora e compositora de 63 anos fez uma participação especial no show do artista Maluma, em Medellín, na Colômbia. Dançou, rebolou, cantou hits como Music, sacudiu as tranças. 

Mais espevitada do que muito marmanjo cujo movimento corporal mais ousado é ir buscar o pacote do iFood na portaria do prédio, Madonna rapidamente viu sua carreira de mais de quatro décadas ser resumida a “o que aconteceu com a cara dela?”. Houve vários insultos no Instagram, como elencou Jeff Benício neste texto: “Parece uma bêbada inchada”; “O close do rosto dela vai me fazer ter pesadelos”; “Ela arruinou a si mesma”; “Simplesmente trágico. Desista enquanto você está por cima”; “Se retire! Acabou, garota, quer dizer, vovó”; “Ela não é mais a Madonna”.

Poucos dias depois, foi a vez de Xuxa, que fez 60 anos nesta segunda-feira, dia 27. A apresentadora, que tem estado em maior evidência desde que entrou forte na campanha contra a reeleição de Bolsonaro (obrigada, Xuxa), sofreu e sofre milhões de ataques por simplesmente envelhecer. A maioria vem justamente da direita bolsonarista, magoada com o posicionamento da artista, mas não apenas. No Twitter, não se economiza na crueldade: depois de classificá-la como “velha”, uma pessoa completou: “Pele já morreu, Ayrton já morreu, você já morreu em vida”. 

As big techs, é claro, tiram suas casquinhas desse ódio contra as mulheres mais velhas: quando coloquei o nome de Madonna e de Xuxa no Google, foi isso que apareceu:

Não eram as carreiras, feitos, conquistas, músicas, shows, filhos, filhas  ou amores das duas famosas o que interessavam: nessa máquina de moer gente, as mulheres, muito mais do que os homens, precisam dar conta de suas idades e de quanto pesam. No final, seja uma anônima cursando biomedicina em Bauru, seja uma celebridade que habita há tempos as nossas retinas e nossas telas, o fato é que somos proibidas de envelhecer ocupando o espaço público. 

Depois de certa idade, devemos ir para as sombras e ficar dentro de nossas casas. Uma vez que, nessa lógica desumanizante, nossa única serventia na vida é decorar ambientes sendo jovens e bonitas, temos que nos retirar para abrir espaço para novas levas. Parece que só assim poderemos ser poupadas.

Juventude e retrocesso

A destruição simbólica da velhice na cena pública tem irmandade com o populismo de direita: a ideia de que o “novo” é uma qualidade em si e, portanto, deve-se destruir o “antigo”, fundamentou regimes como o fascismo, o nazismo e, recentemente, o bolsonarismo. Não importa se as ideias que circulam nesses movimentos sejam cobertas de mofo e pátina: importa que elas pareçam trazer novidades. 

É assim, por exemplo, que um pensamento extremamente anacrônico como a transfobia do deputado federal Nikolas Ferreira do PL, de apenas 26 anos, ganha (muito) espaço no debate público. É assim também que um pensamento afiado (a exemplo do projeto de lei 8420/2017, que democratizava o Conselho Nacional de Assistência Social) como o da deputada Luiza Erundina, do Psol, de 88, deixa muitas vezes de circular com mais força, uma vez que estamos de olhos voltados para cada nova velha coisa que o reacionarismo brasileiro produz.  Estão lembradas do jovem Gabriel Monteiro? Pois é.

‘A velhofobia e a adoração à juventude têm relação com a sexualização de crianças e adolescentes’.

O crescimento de práticas da extrema direita entre jovens, aliás, é uma realidade. Ricardo Gonçalves Severo, Wivian Weller e Gabrielle Araújo fizeram um levantamento com 2.169 respondentes em escolas de ensino médio dos municípios de Pelotas, Caxias do Sul e Porto Alegre, todos do Rio Grande do Sul, e analisaram como rapazes brancos, evangélicos e católicos se identificam mais com posições como as do deputado do PL. Retrocesso não tem idade.

É vital observarmos essa dinâmica, ou podemos alimentar os corvos que tentarão nos comer os olhos. Principalmente pessoas (nas quais me incluo) que se interessam pela discussão das fortes desigualdades que perpassam a população brasileira: hoje, por exemplo, finalmente louvamos nossas bisavós, avós, mães, tias. Então me parece uma contradição imensa falarmos sobre ancestralidade enquanto destilamos velhofobia pelas redes. 

Aliás, é desconcertante ver como esse comportamento se fortaleceu também entre uma geração que possui letramentos vários sobre preconceitos, como o body shaming, a gordofobia e mesmo os conhecidos machismo, racismo e a transfobia. Não se trata aqui de um comparativo entre preconceitos (racismo e transfobia são, ao contrário da velhofobia, vividos durante toda uma vida), mas, se estamos falando sobre bullying, discriminações e desumanizações, é preciso colocar o assunto na mesa.  

A velhofobia e uma cultura de adoração à juventude têm, no limite, também relações com a sexualização de crianças e adolescentes: afinal, quem são muitas vezes as “novinhas” cantadas em tantas músicas ou presentes massivamente na indústria pornô? No TCC Novinha é apenas uma criança: as implicações do tráfico de crianças e adolescentes para fins de exploração sexual no Brasil, Thalyta de Souza analisou o assunto no contexto do aliciamento de jovens para fins sexuais. 

Um erro conceitual que vi se repetir nas redes e nos muitos programas jornalísticos sobre o assunto nos últimos dias foi a confusão entre etarismo e velhofobia. Não devem ser usados como sinônimos, uma vez que o etarismo – o preconceito pela idade – também se dá contra pessoas jovens. É o caso, por exemplo, quando deixa-se de contratar uma pessoa por ela ser “nova demais”, apesar de apresentar qualificações para o cargo – ainda associamos juventude à inexperiência e à incapacidade. Já a velhofobia tem um nome autoexplicativo e é voltada unicamente para pessoas mais velhas – mas não necessariamente idosas, como no caso de Bauru. É usada também como sinônimo de “gerontofobia”, a discriminação com tudo que envolva a velhice ou o envelhecimento. 

Todas repousam em estereótipos e são negativas para quem é alvo. A ideia de uma pessoa idosa e, portanto, alquebrada, é uma delas. Alguns gestos, inclusive no campo institucional, começaram a ser feitos: ano passado, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou a substituição do famoso pictograma visto nas vagas reservadas para idosos. No lugar de um idoso curvado e de bengala, há uma figura ereta e a sinalização 60+, objetivo do PL 2256/2021. O Conselho Nacional de Trânsito também alterou o modelo de placas em 2022 e vai passar a usar a mesma figura.

São símbolos cotidianos, extremamente populares e, por isso mesmo, poderosos. Podem ajudar, ao seus modos, a repensarmos frases como “não parece que você tem essa idade” ou “você parece mais jovem” a princípio tidas como elogios, do mesmo modo que como um “você está mais magra”. No fundo, porém, essas falas comuns estão repletas de significados: elas nos dizem quem vale mais, quem vale menos, quem deve participar do mercado romântico, quem deve estar fora dele, etc.

No fim, é triste ver esse paredão de ignorância contra algo inescapavelmente humano, quase uma espécie de futuro auto-ódio em formação. Por aqui, torcendo que a gente alcance um milagre e não destrua o que ainda nos restou de planeta, eu fico na esperança de que a gente envelheça mesmo – e que esse envelhecer seja acompanhado de saúde, amor, ginga, cuidado, comida no prato e tesão. Não tem filtro, plástica ou bisturi que sejam melhor do que isso.

Mais sobre o tema:

O pessoal do Politize! escreveu sobre o assunto, voltando-se para pessoas mais jovens. Temos também o artigo Racismo e Envelhecimento da População Negra. Miriam Goldberg, uma grande pesquisadora do assunto, fala sobre ele nesta palestra aqui.

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